Infalibilidade Papal


Veneráveis padres e irmãos: Não sem temor, porém com uma consciência livre e tranqüila, ante Deus que nos julga, tomo a palavra nesta augusta assembléia. Prestei toda a minha atenção aos discursos que se pronunciaram nesta sala, e anseio por um raio de luz que, descendo de cima, ilumine a minha inteligência e me permita votar os cânones deste Concílio Ecumênico, com perfeito conhecimento de causa.
Compenetrado da minha responsabilidade, pela qual Deus me pedirá contas, estudei com a mais escrupulosa atenção os escritos do Antigo e do Novo Testamento, e interroguei esses veneráveis monumentos da Verdade: se o pontífice que preside aqui é verdadeiramente o sucessor de São Pedro, vigário do Cristo e infalível doutor da Igreja.
Transportei-me aos tempos em que ainda não existiam o ultramontanismo [1] nem o galicanismo [2] , em que a Igreja tinha por doutores: São Paulo, São Pedro, São Tiago e São João, aos quais não se pode negar a autoridade divina, sem pôr em dúvida o que a santa Bíblia que o Concílio de Trento proclamou como a regra da Fé e da Moral. Abri essas sagradas páginas e sou obrigado a dizer-vos: nada encontrei que sancione, próxima ou remotamente, a opinião dos ultramontanos!
E maior é a minha surpresa quando, naqueles tempos apostólicos, nada há que fale de papa para sucessor de S. Pedro e vigário de Jesus Cristo! Vós, Monsenhor Manning, direis que blasfemo; vós Monsenhor Pio, direis que estou demente!
Não, Monsenhores; não blasfemo nem perdi o juízo! Tendo lido todo o Novo Testamento, declaro, ante Deus e com a mão sobre o crucifixo, que nenhum vestígio encontrei do papado.
Não me recuseis a vossa atenção, meus veneráveis irmãos! Com os vossos sussurros e interrupções justificais os que dizem, como o padre Jacinto, que este Concílio não é livre; se assim for, tende em vista que esta augusta assembléia, que prende a atenção de todo o mundo, cairá no mais terrível descrédito.
Agradeço a Sua Ex., o Monsenhor Dupanloup, o sinal de aprovação que me faz com a cabeça; isso me alenta e anima prosseguir.
Lendo, pois os santos livros, não encontrei neles um só capítulo, um só versículo que dê a São Pedro a chefia sobre os Apóstolos.
Não só o Cristo nada disse sobre esse ponto, como, ao contrário, prometeu tronos a todos os Apóstolos (Mateus, cap. XIX, v. 28), sem dizer que o de Pedro seria o mais elevado que os dos outros!
Que diremos do seu silêncio?
A lógica nos ensina a concluir que o Cristo nunca pensou em elevar Pedro à chefia do Colégio Apostólico.
Quando Cristo enviou os seus discípulos a conquistar o mundo, a todos — igualmente — fez a promessa do Espírito Santo. Dizem as Santas Escrituras que até proibiu a Pedro e a seus colegas de reinarem ou exercerem senhorio (Lucas, XXII, 25 e 26). Se Pedro fosse eleito papa Jesus não diria isso, porque, segundo a nossa tradição, o papado tem uma espada em cada mão, simbolizando os poderes espiritual e temporal. Ainda mais: se Pedro fosse papa ou chefe dos Apóstolos, permitiria que esses seus subordinados o enviassem, com João, à Samaria, para anunciar o Evangelho do Filho de Deus? (Atos, c. VIII, v. 14).
Que direis vós, veneráveis irmãos, se nos permitíssemos, agora mesmo, mandar Sua Santidade Pio IX, que aqui preside, e Sua Eminência, Monsenhor Plantier, ao Patriarca de Constantinopla, para convencê-lo de que deve acabar com o cisma do oriente? O símile é perfeito, haveis de concordar.
Mas temos coisa ainda melhor:
Reuniu-se em Jerusalém um concílio ecumênico para decidir questões que dividiam os fiéis. Quem devia convocá-lo? Sem dúvida, Pedro, se fosse papa. Quem devia presidir a ele? Por certo, Pedro. Quem devia formular e promulgar os cânones? Ainda Pedro, não é verdade? Pois bem: nada disso sucedeu! Pedro assistiu ao concílio com os demais Apóstolos, sob a direção de São Tiago! (Atos, cap. XV).
Assim, parece-me que o filho de Jonas não era o primeiro, como sustentais.
Encarando agora por outro lado, temos: enquanto ensinamos que a Igreja está edificada sobre Pedro, S. Paulo (cuja autoridade devemos todos acatar) diz-nos que ela está edificada sobre o fundamento da fé dos Apóstolos e Profetas, sendo Jesus Cristo a principal pedra do ângulo. (Epistola aos Efésios, cap. II, v. 20) Esse mesmo Paulo, ao enumerar os ofícios da Igreja, menciona apóstolos, profetas, evangelistas e pastores; e será crível que o grande Apóstolo dos gentios se esquecesse do papado, se o papado existisse? Esse olvido me parece tão impossível como um historiador deste Concílio que não fizesse menção de Sua Santidade Pio IX.
(Apartes: Silêncio, herege! Silêncio!)·...
Calmai-vos, veneráveis irmãos, porque ainda não conclui, impedindo-me de prosseguir, provareis ao mundo que sabeis ser injustos, tapando a boca do mais pequeno membro desta assembléia.
Continuarei:
O Apóstolo Paulo não faz menção, em nenhuma das suas Epistolas, às diferentes Igrejas, da primazia de Pedro; se essa existisse e se ele fosse infalível como quereis, poderia Paulo deixar de mencioná-la, em longa Epístola sobre tão importante ponto?
Concordai comigo. A Igreja nunca foi mais bela, mais pura e mais santa que naqueles tempos em que não tinha papa.
(Apartes: Não é exato; não é exato!).
Porque negais, Monsenhor de Laval? Se algum de vós outros, meus veneráveis irmãos, se atreve a pensar que a Igreja, que hoje tem um papa (que vai ficar infalível), é mais firme na fé e mais pura na moralidade que a Igreja Apostólica, diga-o abertamente ante o Universo, visto como este recinto é um centro do qual as nossas palavras voam de pólo a pólo! Calai-vos? Então continuarei:
Também nos escritos de S. Paulo, de S. João, ou de S. Tiago, não descubro traço algum do poder papal! S. Lucas, o historiador dos trabalhos Apostólicos, guarda silêncio sobre tal assunto!
Isso deve preocupar-vos muito.
Não me julgueis um cismático!
Entrei pela mesma porta que vós outros; o meu título de Bispo deu-me direito a comparecer aqui, e a minha consciência, inspirada no verdadeiro Cristianismo, me obriga a dizer-vos o que julga ser verdade.
Pensei que, se Pedro fosse vigário de Jesus Cristo, ele não o sabia, pois que nunca procedeu como papa: nem no dia de Pentecostes, quando pregou o seu primeiro sermão, nem no Concílio de Jerusalém, presidido por S. Tiago, nem na Antioquia, e nem nas Epístolas que dirigia às Igrejas. Será possível que ele fosse papa sem o saber?
Parece-me escutar de todos os lados: Pois S. Pedro não esteve em Roma? Não foi crucificado de cabeça para baixo? Não existem os lugares onde ensinou e os altares onde disse missa nessa cidade?
E eu responderei: Só a tradição, veneráveis irmãos, é que nos diz ter S. Pedro estado em Roma; e como a tradição é tão somente a tradição da sua estada em Roma, é com ela que me provareis o seu episcopado e a sua supremacia?
Scalígero, um dos mais eruditos historiadores, não vacila em dizer que o episcopado de S. Pedro e a sua residência em Roma se devem classificar no número das lendas mais ridículas!
(Repetidos gritos e apartes: Tapai-lhe a boca, fazei-o descer desta cadeira!).
Meus veneráveis irmãos, não faço questão de calar-me como quereis, mas não será melhor examinar todas as coisas como manda o Apóstolo, e crer só no que for bom? Lembrai-vos de que temos um ditador ante o qual todos nós, mesmo Sua Santidade Pio IX, devemos curvar a cabeça: Esse ditador, vós bem o sabeis, é a História!
Permiti que repita: Folheando os sagrados escritos não encontrei o mais leve vestígio do papado nos tempos apostólicos! E percorrendo os anais da Igreja, nos quatro primeiros séculos, o mesmo me sucedeu! Confessar-vos-ei que o que encontrei foi o seguinte:
Que o grande Santo Agostinho, bispo de Hipona , honra e glória do Cristianismo e secretário no Concílio de Melive, nega a supremacia ao bispo de Roma.
Que os bispos da África, no sexto Concílio de Cartago, sob a presidência de Aurélio, bispo dessa cidade, admoestavam Celestino, bispo de Roma, por supor-se superior aos demais bispos,enviando-lhes comissionados e introduzindo o orgulho na Igreja.
Que, portanto o papado não é instituição divina.
Deveis saber meus veneráveis irmãos, que os padres do concílio de Calcedônia colocaram os bispos da antiga e nova Roma na mesma categoria dos demais bispos.
Que aquele sexto Concílio de Cartago proibiu o titulo de “Príncipe dos Bispos”, por não haver soberania entre eles.
E que São Gregório I escreveu estas palavras, que muito aproveitam a tese: — Quando um Patriarca se intitula “Bispo Universal”, o titulo de Patriarca sofre incontestavelmente descrédito. Quantas desgraças não devemos esperar, se entre os sacerdotes se suscitar tais ambições? Esse “bispo” será o rei dos orgulhosos! — (Pelágio II, Cent. 13).
Com tais autoridades e com muitas outras que poderia citar-vos, julgo ter provado que os primeiros bispos de Roma não foram reconhecidos como bispos universais ou papas, nos primeiros séculos do Cristianismo.
E, para mais reforçar os meus argumentos, lembrarei aos meus veneráveis irmãos que foi Osio, bispo de Cordova quem presidiu ao primeiro Concílio de Nicéia, redigindo os seus cânones; e que foi ainda esse bispo que, presidindo ao Concílio de Sardica, excluiu o enviado de Julio, bispo de Roma!
Mas da direita me citam estas palavras do Cristo — Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja.
Sois, portanto chamados para este terreno.
Julgais veneráveis irmãos, que a rocha ou pedra sobre que a Santa igreja está edificada, é Pedro; mas permiti que eu discorde desse seu modo de pensar.
Diz São Cirilo, no seu quarto livro sobre a Trindade: “A rocha ou pedra de que nos fala Mateus, é a fé imutável dos Apóstolos”.
S. Olegário, bispo de Poitiers, em seu segundo livro sobre a Trindade, repete: Que aquela pedra é a rocha da fé confessada da boca de S. Pedro. E no seu sexto livro, mais luz nos fornece, dizendo: É sobre esta rocha da confissão da fé que a Igreja está edificada. S. Jerônimo, no sexto livro sobre S. Mateus, é de opinião que Deus fundou sua Igreja sobre a rocha ou pedra que deu o seu nome a Pedro.
Nas mesmas águas navega São Crisóstomo quando, em sua homilia 56 a respeito de Mateus, escreve: — Sobre esta rocha edificarei a minha Igreja: e esta rocha é a confissão de Pedro. E eu vos perguntarei, veneráveis irmãos, qual foi a confissão de Pedro?
Já que não me respondeis eu vo-la direi: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus”. Ambrósio, o santo Arcebispo de Milão, S. Basílio de Salência e os padres do Concílio de Calcedônia ensinam precisamente a mesma coisa.
Entre os doutores da antiguidade cristã, Santo Agostinho ocupa um dos primeiros lugares, pela sua sabedoria e pela sua santidade. Escutai como ele se expressa sobre a primeira Epistola de S. João: Edificarei a minha Igreja sobre esta rocha, significa claramente que é sobre a fé de Pedro.
No seu tratado 124, sobre o mesmo S. João, encontra-se esta significativa frase: Sobre esta rocha, que acabais de confessar, edificarei a minha Igreja; e a rocha era o próprio Cristo, filho de Deus. Tanto esse grande e santo bispo não acreditava que a Igreja fosse edificada sobre Pedro, que disse em seu sermão nº 13: — Tu és Pedro, e sobre essa pedra ou rocha que me confessaste, que reconheceste, dizendo: Tu és o Cristo, o filho de Deus vivo; edificarei a minha Igreja, sobre mim mesmo; pois sou o filho do Deus vivo. Edificarei sobre mim mesmo e não sobre ti. Haverá coisa mais clara e positiva?
Deveis saber que essa compreensão de Santo Agostinho, sobre tão importante ponto do Evangelho, era a opinião corrente no mundo cristão naqueles tempos. Estou certo de que não me contestareis.
Assim é que resumindo vos direi:
1º - Que Jesus deu aos outros Apóstolos o mesmo poder que deu a Pedro.
2º - Que os Apóstolos nunca reconheceram em S. Pedro a qualidade de vigário do Cristo e infalível doutor da Igreja.
3º - Que o mesmo Pedro nunca pensou ser papa, nem fez coisa alguma como papa.
4º - Que os Concílios dos quatro primeiros séculos nunca deram, nem reconheceram o poder e a jurisdição que os bispos de Roma queriam ter.
5º - Que os Santos Padres, na famosa passagem: — Tu és Pedro, e sobre esta pedra (a confissão de Pedro) edificarei minha Igreja — nunca entenderam que a Igreja estava edificada sobre Pedro (super petrum), e sim sobre a rocha (super petram), isto é: sobre a confissão da fé do Apóstolo!
Concluo, pois, com a História, a razão, a lógica, o bom senso e a consciência do verdadeiro cristão, que Jesus não deu supremacia alguma a Pedro, e que os bispos de Roma só se constituíram soberanos da Igreja, confiscando, um por um, todos os direitos de episcopado!
(Vozes de todos os lados: Silêncio, insolente, silêncio, silêncio!).
Não sou insolente! Não, mil vezes não!
Contestai a História, se ousais fazê-lo; mas ficai certos de que não a destruireis! Se avancei alguma inverdade, ensinai-me isso com a História, à qual vos prometo fazer a mais honrosa apologia. Mas compreendei que eu não disse tudo quanto quero e posso dizer. Ainda que a fogueira me aguardasse lá fora, eu não me calaria!
Sedes pacientes como manda Jesus. Não junteis a cólera ao orgulho que vos domina!
Disse Monsenhor Dupanloup, nas suas célebres — Observações — sobre este Concílio do Vaticano, e com razão, que, se declararmos infalível a Pio IX, necessariamente precisamos sustentar que infalíveis também eram os seus antecessores. Porém, veneráveis irmãos, com a História na mão, eu vos provarei que alguns papas faliram.
Passo a provar-vos, veneráveis irmãos, com os próprios livros existentes na biblioteca deste Vaticano, como é que faliram alguns papas que nos têm governado:
O papa Marcelino entrou no templo de Vesta e ofereceu incenso à deusa do paganismo. Foi, portanto, idólatra; ou pior ainda: foi apostata!
Libório consentiu na condenação de Atanásio; depois passou para o Arianismo [3] .
Honório aderiu ao Monotelismo [4] .
Gregório I chamava Anti-Cristo ao que se impunha como — Bispo Universal; — e, entretanto Bonifácio III conseguiu do parricida Imperador Focas obter esse titulo em 607. Pascoal II e Eugênio III autorizavam os duelos, condenados pelo Cristo; enquanto que Julio II e Pio IV os proibiram. Adriano II, em 872, declarou válido o casamento civil; entretanto, Pio VII, em 1823, condenou-o.
Xisto V publicou uma edição da Bíblia e, com uma bula, recomendou a sua leitura; e aquele Pio VII excomungou a edição. Clemente XIV aboliu a Companhia de Jesus, permitida por Paulo III; e o mesmo Pio VII a restabeleceu.
Porém, para que mais provas? Pois o nosso Santo Padre Pio IX não acaba de fazer a mesma coisa quando, na sua bula para os trabalhos deste Concílio, dá como revogado tudo quanto se tenha feito em contrário ao que aqui for determinado, ainda mesmo tratando-se de decisões dos seus antecessores?
Até isso negareis?
Nunca eu acabaria, meus veneráveis irmãos, se me propusesse a apresentar-vos todas as contradições dos papas, em seus ensinamentos. Como então poderá dar-lhes a infalibilidade? Não sabeis que, fazendo infalível Sua Santidade, que presente se acha e me ouve, tereis que negar a sua falibilidade e a de seus antecessores?
E vos atrevereis a sustentar que o Espírito Santo vos revelou que a infalibilidade dos papas data apenas deste ano de 1870? Não vos enganeis a vós mesmos: Se decretardes o dogma da infalibilidade papal, vereis os protestantes, nossos rancorosos adversários, penetrarem por larga brecha com a bravura que lhes dá a História.
E que tereis vós a opor-lhes? O silêncio, se não quiserdes desmoralizar-vos.
(Gritos: É demais; basta, basta!).
Não griteis, Monsenhores! Temer a História, é confessar-vos derrotados! Ainda que pudésseis fazer rolar toda a água do Tibre sobre ela, não borraríeis nem uma só das suas páginas!
Deixai-me falar e serei breve.
Vergílio comprou o papado de Belisário, tenente do Imperador Justiniano. Por isso, foi condenado no segundo Concílio de Calcedônia, que estabeleceu este cânone: — O bispo que se eleve por dinheiro será degradado.
Sem respeito àquele cânone, Eugênio III, seis séculos depois, fez o mesmo que Vergílio, e foi repreendido por São Bernardo, que era a estrela brilhante do seu tempo.
Deveis conhecer a história do papa Formoso; Estevão XI fez exumar o seu corpo, com as vestes pontificiais; mandou cortar-lhe os dedos e o arrojou ao Tibre. Estevão foi envenenado; e tanto Romano como João, seus sucessores, reabilitaram a memória de Formoso.
Lede Plotino, lede Barônio, o Cardeal!
É dele que me sirvo.
Barônio chega a dizer que as poderosas cortesãs vendiam, trocavam e até mesmo se apoderavam dos bispados; e, horrível é dizê-lo, faziam papas os seus amantes!
Genebrado sustenta que, durante 150 anos, os papas, em vez de apóstolos, foram apóstatas.
Deveis saber que o papa João XII foi eleito com a idade de dezoito anos tão somente; e que o seu antecessor era filho do Papa Sérgio com Marózzia.
Que Alexandre VI era, nem me atrevo a dizer o que ele era de Lucrécia; e que João XXII negou a imortalidade da alma, sendo deposto pelo Concílio de Constança.
Já nem falo dos cismas que tanto têm desonrado a Igreja. Volto porém, a dizer-vos que, se decretais a infalibilidade do atual bispo de Roma, devereis decretar também a de todos os seus antecessores; mas, atrever-vos-eis a tanto?
(Gritos: Descei da cadeira, descei já; tapemos a boca desse herege).
Não griteis, meus veneráveis irmãos, com gritos nunca me convencereis. A História protestará eternamente sobre o monstruoso dogma da infalibilidade papal; e quando mesmo todos vós o aproveis, faltará um voto, e esse voto é o meu!
Mas, voltemos à doutrina dos Apóstolos:
Fora dela só há erros, trevas e falsas tradições. Tomemos a eles e aos Profetas pelos nossos únicos mestres, sob a chefia de Jesus. Firmes e imóveis como a rocha, constantes e incorruptíveis nas inspiradas Escrituras, digamos ao mundo: Assim como os sábios da Grécia foram vencidos por Paulo, assim a Igreja Romana será também vencida pelo seu 98!
(Gritos clamorosos: Abaixo o protestante! Abaixo o calvinista! Abaixo o calvinista! Abaixo o traidor da Igreja!).
Os vossos gritos, Monsenhores, não me atemorizam, e só vos comprometem. As minhas palavras têm calor, mas a minha cabeça está serena. Não sou de Lutero, nem de Calvino, nem de Paulo, e sim, e tão somente do Cristo.

(Novos gritos: Anátema! Anátema! Anátema vos lançamos!).
Anátema! Anátema! Para os que contrariam a doutrina de Jesus! Ficai certos de que os Apóstolos, se aqui comparecessem, vos diriam a mesma coisa que acabo de declarar-vos.
Que lhes diríeis vós, se eles, que predicaram e confirmaram com seu sangue, lembrando-vos o que escreveram, vos mostrassem o quanto tendes deturpado o Evangelho do amado Filho de Deus? Acaso lhes diríeis: Preferimos a doutrina dos Loiólas à do Divino Mestre? Não! Mil vezes não! A não ser que tenhais tapado os ouvidos, fechado os olhos e embotado a vossa inteligência, o que não creio.
Oh! Se Deus quer castigar-nos, fazendo cair pesadamente a sua mão sobre nós, como fez ao Faraó, não precisa permitir que os soldados de Garibaldi nos expulsem daqui; basta deixar que façais de Pio IX um Deus, como já fizestes uma deusa da Virgem Maria.
Evitai, sim, evitai, meus veneráveis irmãos, o terrível precipício a cuja borda estais colocados. Salvai a Igreja do naufrágio que a ameaça, e busquemos todos, nas Sagradas Escrituras, a regra da fé que devemos crer e professar, Digne-se Deus assistir-me.
Tenho concluído!
(Todos os padres se levantaram, muitos saíram da sala; porém alguns prelados italianos, americanos, alemães, franceses e ingleses rodearam o inspirado orador e, com fraternais apertos de mão, demonstraram concordar com o seu modo de pensar).

NOTAS:
1. Doutrina e política dos católicos sobretudo franceses que se apoiavam na Cúria Romana (além dos montes), opondo-se aos Galicanos no séc. XVII. O termo passou a significar o sistema e a tendência dos que sustentam a autoridade absoluta do papa em matéria de fé e disciplina como poder centralizado e único.
2. Doutrina surgida em dois momentos históricos: no séc. XIV, defendendo a ingerência dos reis franceses em negócios eclesiásticos; e no séc. XVII, preconizando a autonomia dos bispos franceses em relação a autoridade pontifícia.
3. Doutrina professada por Ário, padre alexandrino do séc. IV, que subordinava o Logos ao Pai, o único eterno e verdadeiro Deus. Foi condenada pelo Concílio de Nicéia (325). O arianismo expediu-se durante todo o século chegando a formar radicais como a dos anomeus. Foi definitivamente eliminado do Império, após numerosas flutuações e tomadas de posição contraditórias.
4. Doutrina Teológica defendida no séc. VII por Sérgio, patriarca de Constantinopla, como desdobramento do monofisismo. Sustentava que Cristo possuía uma única vontade ou energia por causa da unidade de pessoa e de natureza. Foi reprovada pelo 3º Concílio de Constantinopla em 680 - 681.


Discurso pronunciado no célebre Concílio de 1870 pelo Bispo Strossmayer.

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